As Curvas da Vida.
- Marco DaCosta
- Dec 8, 2024
- 3 min read

Em 1872, o alemão Revert Henrique Klumb, fotógrafo do imperador, lançou o primeiro guia de viagens do Brasil: “Doze Horas em Diligência - Guia do Viajante de Petrópolis a Juiz de Fora”. A obra não só narrava a fantástica travessia pela Estrada União Indústria, mas também imortalizava, com textos e imagens, um trajeto que era símbolo do progresso. Construída na época do Império, a União Indústria foi uma das primeiras estradas pavimentadas da América Latina, um marco da modernidade brasileira. Mas para mim, e para a minha família, aquela estrada sempre foi muito mais do que um caminho — foi palco de tragédias, aventuras e memórias inesquecíveis.
Cem anos depois do lançamento do guia de Klumb, foi exatamente em uma das curvas da União Indústria que perdemos o tio Ricardo em um grave acidente. Desde então, aquela estrada passou a carregar uma aura de reverência e emoção em cada viagem. Lembro-me das idas e vindas de Minas na infância, agarrado à poltrona dos ônibus prateados da Viação Cometa, enquanto cruzava aquelas curvas para visitar minha avó Alaide e minha tia Ondina em Juiz de Fora.
Elas moravam em uma rua tranquila da “Manchester Mineira”, uma cidade que pulsava ao som das leiterias e das fábricas. Meu pai, ferroviário, havia sido transferido para o Rio naquele mesmo ano em que perdemos o tio Ricardo, mas nunca deixava de viajar com minha mãe para visitar a família. Para mim, eram viagens que misturavam emoção e desafio: curvas infinitas, remédio contra enjoo e o teste constante para o meu estômago infantil.
Décadas depois, no final dos anos 90, vivi outra aventura inesquecível naquele caminho. Minha amiga Cátia Almeida, parceira musical da época — quando ousávamos escrever e cantar músicas sobre amor e desafios —, foi peça central dessa história. Alaide e Ondina, já idosas, haviam vindo nos visitar no Rio. Quando chegou a hora de voltarem para Juiz de Fora, Cátia ofereceu uma carona em seu velho Fusca. Era um gesto generoso, mas cheio de riscos: o carro estava irregular, sem seguro e com a manutenção em dia apenas no papel. Ainda assim, parecia o presente ideal para as duas irmãs.
No começo da viagem, tudo parecia tranquilo, até Ondina revelar seu lado mais “precavido”. Ela tomou, escondida, uma dose de aguardente, sua receita secreta para relaxar durante viagens longas.
O cheiro forte de álcool logo tomou o pequeno Fusca. Alaide, do banco de trás, reclamou:
— Que cheiro de álcool é esse?
Antes que pudéssemos responder, foi o próprio Fusca que deu sua opinião, tossindo e falhando na subida como se estivesse embriagado. Cátia, com um olhar incrédulo, murmurou:
— O carro é a gasolina!
Seguimos rindo da confusão, mas a descontração foi interrompida ao avistarmos uma blitz policial. Cátia virou-se para mim com olhos de pânico:
— Agora estamos ferrados.
Foi então que Alaide e Ondina mostraram por que eram as grandes protagonistas da família. Ondina, com a habilidade dramática de quem cresceu assistindo a clássicos italianos, jogou-se no colo da irmã e simulou um mal-estar digno de prêmios. O policial, visivelmente desconcertado, não quis se responsabilizar por uma senhora “à beira de um colapso”:
— Podem seguir, rápido!
Assim que cruzamos a barreira, Ondina se levantou, completamente recuperada, enquanto ríamos da atuação impecável que nos livrou de uma multa e possivelmente da apreensão do carro. Chegamos a Juiz de Fora ao final daquela tarde, aliviados e emocionados com a cumplicidade que havia nos salvado.
Foi a última viagem delas juntas, e a última ao meu lado também. Alaide e Ondina nos deixariam alguns anos depois, mas aquela aventura, costurada pelas curvas da União Indústria, ficou marcada para sempre. Aprendi que as estradas da vida são feitas de desafios e risos, e que o verdadeiro valor delas está nas pessoas com quem compartilhamos o caminho.
Décadas se passaram, mas sigo lembrando daquelas mulheres incríveis que moldaram minha infância. E sempre que penso nas curvas da vida, sei que a maior riqueza do mundo é a família e a cumplicidade que nos faz atravessar qualquer estrada — rindo, chorando e criando memórias que o tempo nunca apaga.
Londres, Outubro de 2024
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